A ausência de Bolsonaro no Palácio do Planalto completou três semanas. Na iniciativa privada, quatro semanas longe do local de trabalho justificam uma demissão por justa causa. Na Presidência, a falta de assiduidade é premiada com o pagamento do contracheque sem a contrapartida do trabalho. No caso de Bolsonaro, o contrassenso é ainda maior, pois ele recebe o salário para conspirar contra o interesse público. Abriu mão de presidir a República. Mas molha a camisa presidindo iniciativas antidemocráticas.
A ociosidade de Bolsonaro é apenas aparente. Longe dos refletores, o presidente exibe intensa atividade. Age para prolongar os acampamentos que reivindicam “intervenção federal” na frente de prédios do Exército. E articula uma nova investida contra a Justiça Eleitoral. As duas iniciativas visam um objetivo comum: estimular a crença segundo a qual o resultado da eleição presidencial poderia ser modificado por uma reviravolta qualquer. Nas últimas horas, as más intenções de Bolsonaro foram terceirizadas a personagens subalternos, em dois lances.
Num, Bolsonaro pressionou Valdemar Costa Neto, o dono do PL, a colocar em dúvida o resultado de pelo menos 250 mil urnas eletrônicas. O questionamento será protocolado nesta semana no Tribunal Superior Eleitoral. Noutro lance, Bolsonaro transformou o general Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada, num boneco de ventríloquo. Expressando-se pela boca do general, o capitão reativou o seu cercadinho, enviando recados messiânicos que se propagam pelo WhatsApp e outras redes sociais bolsonaristas.
Neste sábado, Valdemar Costa Neto declarou, por “insistência” de Bolsonaro, que cerca de 250 mil urnas antigas utilizadas nas eleições de 2022 não dispõem de número de identificação individualizado. Insinuou que deveriam ser desconsideradas. Informou que entregará ao TSE, provavelmente na terça-feira, relatório com as “provas” colecionadas pelo partido. “É no Brasil inteiro”, disse ele. “São as urnas de 2020 para baixo, são as urnas antigas. Todas elas têm o mesmo número, não têm patrimônio, não tem como controlar a urna. Você vai checar a urna antes da eleição, são todas com o mesmo número.”
Um detalhe torna risível o lero-lero do PL: as mesmas urnas que enviaram Lula para o trono pela terceira vez deram ao partido de Valdemar as maiores bancadas nas duas Casas do Congresso. Usada no cálculo dos fundos eleitoral e partidário, a bancada de deputados do PL, com 99 representantes, fará de Valdemar o gestor da maior caixa registradora do mercado partidário.
O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, poderia convidar Valdemar para uma audiência. Abriria o diálogo com duas indagações singelas: Se as urnas são inconfiáveis, o PL promoverá uma renúncia coletiva dos seus parlamentares? Devolverá as arcas bilionárias?
Na sexta-feira, véspera do stand-up comedy de Valdemar, Braga Netto havia parado o carro no cercadinho do Alvorada para conversar com um grupo de bolsonaristas. O general soou enigmático: “Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”. Oscilando entre a lamúria e a impaciência, uma mulher interveio: “A gente está na chuva, no sufoco”. E o boneco, articulando palavras do seu ventríloquo: “Eu sei, senhora. Tem que dar um tempo, tá bom?”.
O diálogo de Braga Netto com os bolsonaristas foi filmado. O vídeo deslizou, com método, para dentro das redes sociais. Horas depois, Braga Netto tornou-se um dos tópicos mais efervescentes na lista dos assuntos mais comentados do dia no Twitter. O Jornal da Cidade Online, ninho do bolsonarismo no Telegram, divulgou um link que conduz à filmagem com a fala do general. “A mensagem foi dada”, anota a legenda.
Como candidato a vice, Braga Netto atravessou a campanha mudo. Convertido em boneco, o general tornou-se coadjuvante de uma palhaçada. Manipulado por Bolsonaro, seu ventríloquo, soltou a matraca. Passou a operar como uma espécie de porta-voz informal do golpismo do chefe. Na quinta-feira, em outra manifestação feita no cercadinho, esforçou-se para desfazer a maledicência segundo a qual o presidente abdicou da tarefa de presidir.
Segundo Braga Netto, Bolsonaro já estaria curado de uma moléstia na perna. “Ele deve voltar logo. Ele já se recuperou da infecção. Está tudo bem”, disse. Abstendo-se de fixar uma data para o retorno, o general entoou antes de se retirar o bordão predileto do presidente: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
No dia anterior, quarta-feira, Bolsonaro irritara-se com uma revelação feita pelo vice Hamilton Mourão. Colega de generalato de Braga Netto, Mourão havia sido incumbido, por intermédio de um emissário do presidente, da tarefa de receber no Planalto as credenciais de embaixadores estrangeiros.
Ao justificar a ausência do titular, o vice informara que Bolsonaro contraíra uma erisipela, infecção bacteriana aguda. “É questão de saúde”, explicara Mourão. “Está com uma ferida na perna, uma erisipela. Não pode vestir calça, como é que ele vai vir para cá de bermuda?”
Antes, numa entrevista ao jornal Valor Econômico, Mourão havia esboçado um cenário que contrastava com a atmosfera de anormalidade que vigora na realidade paralela que Bolsonaro tenta criar. Indagado sobre a reação dos militares diante do retorno de Lula ao poder, Mourão declarou: “Vai continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes.” Citando uma frase atribuída a Delfim Netto, czar da Economia no tempo da ditadura, o vice de Bolsonaro disse que, no dia 1º de janeiro, “a quitanda precisa abrir com berinjela pra vender e troco para o freguês. É isso que vai acontecer”.
Em essência, o que Mourão declarou, com outras palavras, é que a hipótese de virada de mesa só existe na cabeça de Bolsonaro. Prestes a assumir o mandato de senador que recebeu do eleitorado gaúcho, Mourão não se anima a endossar o questionamento ao resultado das urnas. O mesmo ocorre com aliados pragmáticos como o novo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura. Enquanto os devotos do bolsonarismo tomam chuva na frente dos quartéis e Bolsonaro discute com seus prepostos de que lado da terra plana vai saltar, o Brasil real se prepara para a aterrissagem do terceiro mandato de Lula. A despeito de todos os esforços em contrário, o bunker antidemocrático de Bolsonaro, estilhaçado pelas urnas, será desmontado em 41 dias. (Por Josias de Souza – UOL)